domingo, 6 de junho de 2010

Lá está a Selecção no Cabo das Tormentas

Aquela terra, a da África do Sul, tem na história portuguesa um lugar especial. Cheira a passagem de pimenta, a noz moscada, a gengibre e todas essas especiarias que, nos idos anos de 1500 e poucos mais, Portugal conseguiu desviar da rota terrestre, então em mãos das repúblicas italianas. Passado aquele Cabo, o das Tormentas, por Bartolomeu Dias, logo o Gama haveria de chegar à Índia e abrir as sacas para trazer a canela pelos mares Índico e Atlântico, também mais esta riqueza, que Lisboa fez despovoar, até pelo seu cheiro.
Hoje, cinco séculos e pique depois, os navegadores, disse-o Carlos Queirós, são outros. Não choram nas naus, não vestem trapos, não saem sem eira nem beira, não sabem o que é querer comer e não ter pão à mesa, para si e para os seus, não partem na incerteza de não voltar, que a sua sepultura, nessas épocas recuadas, era o mar revolto, assanhado e pouco meigo. Nada disso. Também pouco desses sinais de grandes façanhas, à dimensão de tão fortes antepassados.
Hoje, convenhamos, os tempos são outros. Saem os nossos "heróis" de um hotel dourado, em Oeiras, passam pelo Parque Eduardo VII em pose de vedetas, a disputarem o lugar com Tony Carreira, vêem-se aplaudidos por cerca de 80000 entusiastas ( de Carreira ou da Selecção, ou de uma operação bem conseguida por juntar as duas faces da moeda?), desfilam pela passerelle, acenam um adeus, dormem uma soneca em avião meio vazio, aterram em aeroporto seguro, sentem o calor do nosso povo - que maravilha sentir estas palmas em terras tão distantes! - e logo partem para um outro Hotel de sonho, que foi preparado ao pormenor.
Entre os heróis de quinhentos e as esperanças de agora vai a diferença entre um querer feito de desejo e necessidade e a "magia" de um desporto que, vivendo sobre um ninho de gente bem mimada, transporta consigo a ideia de que os seus êxitos são pau para toda a colher: enriquecem o nosso ego e, por estranho que pareça, fazem esquecer dificuldades e perigos.
Como quer que seja, que estes "navegadores" sejam um pouco do alento que precisamos!
E que estejam à altura de levar o seu barco a bom porto, aprendendo a lição daqueles que, naquelas terras, içaram um padrão que não mais faz esquecer a presença portuguesa por azimutes tão distantes.
Sem saudosismos, mas com gratidão e reconhecimento pelo nosso passado, nesta hora de partida para o Mundial de Futebol, esperamos que a chegada seja tão coroada de êxitos quanto o foram muitas daquelas que, entrando pelo Tejo dentro, por entre dores e lágrimas, abraços e aplausos, traziam taças e riquezas que, por cá, sabiam a mel.
Não queremos pedir muito. Mas fica-nos bem esperar que tanta palmada nas costas e tamanhos salamaleques tenham o retorno que se aguarda.
Para um país em crise profunda, agastado consigo mesmo e com meio mundo, umas vitórias, vamos lá, aquecem-nos o coração, que do estómago alguém terá de cuidar.
Mas isso é tarefa para outros jogos e outros estádios, em Lisboa e em Buxelas, a muitas milhas da África do Sul...